Vovô Ernani

Vô, conta pra mim a piada do sacristão? 
Vô, vamos jogar o jogo da memória? 
Vô, esse caracol aqui é o cocô do passarinho da sua gaiola! 
Não,vô, avozinho mixuruca é o vovô do satanás.
Vô, por que você tem essa birruguinha em baixo do braço?
Vô canta pra mim a música do João-Dé?
Vô, abunda é feio.
Vô, eu não gosto de mão de velho.
Vô, Papai Noel não existe!




Thiago passou pela minha postagem anterior, deixou um comentário por lá e no fim ele me chamou de Liloca. Gente, esse nome me trouxe uma lembrança tão gostosa... me levou pra mais de 40 anos atrás... (paro por aí, rs), pois quem me chamava de Liloca era meu amado vovô Ernani. Bateu uma saudade tão grande dele que chegou doer. Resolvi escrever este texto em homenagem ao meu adorado vovô. Quanto mais o tempo passa mais eu percebo o quanto ele foi importante para mim.

Ernani Dias da Silva,  diácono batista, natural de Santa Maria, em Campos, no norte do estado do RJ. Era alfaiate, neto de um chinês com uma baiana (que mistura!), moreno, com um belo rosto quadrado, semi-calvo e deficiente físico. Membro de uma família de vários filhos.

Ele tinha uma alfaiataria em Bom Jesus do Itabapoana e sua vida era relativamente próspera. Vovô sofrera de poliomielite aos 3 anos de idade, por isso andava balançando o corpo para compensar a hipertrofia da perna deficiente. Mas era muito ativo. Andava de bicicleta por toda a cidade e era dono de um afinado tenor. Depois de adulto, fraturou a perna boa, o que o fez começar a coxear das duas pernas. 

Quando minha mãe era adolescente, ele teve tuberculose e veio para o RJ se tratar. Ficou afastado da mulher e das filhas, e isso fez a economia da família despencar, pois ele ficou por mais de um ano em recuperação na casa de uma de suas irmãs. Depois disso nunca mais teve o mesmo vigor profissional. A família se mudava o tempo inteiro por conta do aluguel que encarecia. Chegaram morar em um cortiço. Houve fome na casa em certa época. Vovó, minha mãe e minha tia começaram a trabalhar como empregadas domésticas, enquanto o vovô fazia os serviços pingados que lhe apareciam, num contexto onde o mercado de roupas se industrializava e um alfaiate de ternos para senhores se perdia no abstrato cenário urbano. Teve que começar a fazer outros serviços.

Não foi por acaso, então, que, quando nasci, eu virei o sol da vida dele e ganhei o nome de Liloca - sua primeira neta. Esse nome era exclusivo, só ele me chamava assim. Se hoje eu falo pelos cotovelos, a culpa é dele, pois ele me dava muita corda. Minha mãe conta que quando eu tinha 2 anos de idade, vovô me colocava na tampa de sua máquina de costura e ficava horas conversando comigo. Conversávamos o dia inteiro e o assunto não acabava. E acho que aprendi a costurar por osmose pois um dia, antes dos 9 anos, eu descobri que sabia costurar. Qualquer atividade que minha mãe fazia fora de casa, ela me deixava na casa do vovô.

Quando eu já tinha 3 para 4 anos, minha vó se mudou da Mangueira para o Jacarezinho e meu pai comprou uma casinha numa favela fora do morro, em Manguinhos. Manguinhos fica perto do Jacarezinho, então dava para ir a pé da nossa casa até a casa do vovô. Conheço cada beco destas três favelas por causa da nossas andanças desta época. Na segunda casa que eles moraram no Jacarezinho, vovô começou a criar passarinhos. Aos 7 anos eu conhecia uma variedade muito grande deles (galo-da-serra, coleiro, sabiá, periquito, rolinha, canário ...)

Vovô era quem me contava histórias e ouvia as minhas, cantava, jogava comigo sueca e jogo da memória,  me ensinava a diferença entre as moedas de réis, mil réis, tostão, centavo, conto.  Ele tinha uma risada engraçada, com efeito "fade out", dessas cujo som é falho, vai sumindo e repetindo... Ele sempre chorava de tanto rir. Ele tinha só dois dentes e me lembro que fiquei muito feliz quando ele começou a usar dentadura. Ele ria muito das minhas histórias e das minhas perguntas curiosas ao extremo. Eu o achava o homem mais perfeito do mundo. As pernas não faziam menor diferença para mim. Ele era meu herói.

Lembro que uma vez brincávamos de jogo da memória, ele sempre me deixava ganhar o jogo, e eu, toda metida, me achava. Aí eu murmurei baixinho: "esse vovozinho é muito mixuruca". Ele ouviu e foi provocar: "Quem é vovozinho mixuruca, Liloca?" Eu entrei em pânico com o flagrante que ele me dera e respondi rapidamente: "Ninguém não vô, mixuruca é o vovozinho do satanás", claro que ele riu de chorar e eu fiquei muito sem graça de ter falado mal do meu avô...  Argumentações de teologia sistemática aos 5 anos de idade, pode?

Por ele fiquei sabendo, ainda muito pequena, que Getúlio Vargas tinha sido o "melhor presidente do Brasil", hoje montando o projeto do doutorado, entendo porque os trabalhadores daquela geração tinham esta idéia do Getúlio.

Fui muito amada pelo meu avô. Olho para trás e vejo que ele preencheu uma lacuna na minha vida que nem meu pai e minha mãe juntos conseguiram preencher. 

Quando eu estava na pré-adolescência, vovó conseguiu comprar uma casa em Campo Grande da antiga COHAB. Eles se mudaram para lá e ficamos mais distantes. E começou a minha terrível adolescência. A ausência do amor do meu avô por perto de mim me desequilibrou mais do que eu podia dimensionar,  pois ele me supria de amor completamente. Me tornei bastante perdida no mundo.

Nós o visitávamos uma vez por mês. Minha vó trabalhava longe  e muitas vezes a viagem de trem atrasava o seu retorno pra casa. Foi então que vovô, hipertenso, ficava muito preocupado com ela,  e com isso teve 4 episódios de AVC. Na primeira vez pensamos que ele ia morrer, nem conseguia falar. Mas de  cada reincidência do derrame ele levantava mais forte. A partir da segunda vez ele se tornou cadeirante e era muito querido na vizinhança. Seu Ernani tornou-se o avô de todas as crianças do bairro. As mães deixavam os filhos com ele para trabalhar fora fazendo faxina e como passadeiras.


Vovô não frequentava a igreja. Eu achava que era por causa da limitação da deficiência, mas com o tempo descobri que era, de fato, uma rebeldia com as lideranças que ele achava legalistas, intolerantes e sem misericórdia. Ele não se reconciliava com a igreja por conta de alguns episódios do passado que o tornaram alvo dos algozes do legalismo. A irmã mais nova de mamãe tinha sido excluída da igreja por usar uma blusa de alcinhas, o vovô achou aquilo o cúmulo.

Mas depois do segundo derrame, vovô pediu reconciliação com a mesma igreja de onde fora excluído por rebelar-se contra a decisão das lideranças quando minha tia foi excluída. Ele se reconciliou entre 82 e 86, quando meu pai foi pastor de lá.

Mesmo não podendo frequentar os cultos por morar tão longe ele se sentia em comunhão com o Corpo de Cristo. Passou a ter uma vida de grande comunhão com Deus. Lia a Bíblia e orava todos os dias. Ele se tornou meu principal incentivo para cultivar uma vida devocional, quando em 83 eu aprendi essa prática como disciplina espiritual.  Uma vez os adolescentes da igreja foram visitá-lo. Ele já quase andava de muletas somente. Sempre se recuperava mais forte de cada recaída do derrame.

Vovô morreu, se não me engano, na virada de 1985 para 1986. Eu tinha terminado o segundo grau mas ainda não tinha entrado na faculdade. Um infarto fulminante, morreu praticamente dormindo. Eu herdei a Bíblia dele, mas tive que me desfazer dela em 1991 quando embarquei no Logos II como missionária.

Durante dez anos subsequentes eu ainda sonhava que conversava com ele. Quando meus filhos nasceram eu sonhava que ele os conhecia. Foram muitas as vezes que sonhei com meu avô. Hoje percebo que ele foi mais que um avô, foi pai, foi mãe, foi amigo, foi irmão em Cristo, e muito da ternura que tenho pelas pessoas e pelo mundo eu devo a este homem tão honrado que amava a vida com tanta força  e que não desistia de viver. Me dou conta agora de onde veio esta minha tenacidade. Veio dele. 

Também me dou conta de onde veio essa coisa que me faz, depois de  cada solapada, voltar à vida mais forte do que era antes, veio de você, vô. E percebo que, guardadas as devidas proporções, sou muito parecida contigo. Que bom! Agora entendo porque sou tão diferente das outras pessoas. Sabe, vô, você não tem noção onde foi que tua Liloca chegou com aquelas estórias de vovozinho mixuruca, rsrs.  Ela faz um barulho!!

Nos encontraremos juntos aí com Jesus.  Pelas suas contas, isso será em  breve. Pelas minhas, talvez demore um pouco. Serei eu quem vai contar muitas histórias desta vez e você vai dar sua risada "fade out", com dentes lindos e perfeitos, todos originais. 

Receba meu beijo póstumo, com toda minha honra.




Vovô aqui, de paletó claro, à esquerda, sentado.

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